quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Lendo os outros

Se Barack Obama ganhar na próxima semana na América, não será apenas por causa de Barack Obama. Ou de Bush. Ou porque o mundo pede mudança. A ascensão de Obama, a acontecer, precisará de ser explicada por outro motivo. Nunca um político terá sido tão pressuroso e eficiente a usar a linguagem do homem deste tempo: o homem populista.

Em todas as épocas da história recente, para ficarmos só por aqui, apareceu um tipo humano reconhecível, uma espécie de molde mental a que o homem comum e as suas características se podiam ajustar. Primeiro, Tocqueville descreveu o homem democrático, a figura mediana que nasceu com o advento da democracia, o homem que em nome da igualdade repelia qualquer noção de virtude aristocrática, o insatisfeito que implorava sempre por mais direitos e progresso.
Este homem democrático de Tocqueville nunca nos deixou. Com menos ou mais democracia, anda por aí com a mesma ansiedade e ambição igualitarista. Mas no século XX, é certo, transformou-se num género ainda mais indistinto: o homem de massas. Foi Ortega y Gasset quem melhor retratou a criatura massificada que aspira em permanência ao impossível e não possui, palavras do próprio, "nenhuma qualidade de excelência". O homem de massas é o homem que avançou com assustadora obediência para os totalitarismos do século passado; é também, perto de nós, o consumidor crédulo e apático que os críticos da imprensa predadora dizem querer salvar.

Qualquer sociólogo competente pode explicar o que aconteceu a seguir. A complexidade da vida moderna significa que ninguém é dono da sua própria vida. A nossa vida pertence ao Estado, à empresa, ao partido, a inúmeras famílias e organizações por onde a nossa individualidade se distribui. O homem moderno sofre fatalmente de personalidade múltipla. Eleitor, militante, trabalhador, contribuinte, membro disto e daquilo, a sua natureza profunda consiste em representar vários papéis sociais e em ir cumprindo o que lhe pedem.

Quando se rebela contra tanta obediência e representação, é para readquirir uma liberdade que admite ter perdido. Passa então a vestir uma identidade diferente: o homem revoltado que Albert Camus retratou num livro precioso, o contestatário que não pretende seguir nada nem ninguém a não ser a sua consciência, o agitador que julga, acusa e, ainda insatisfeito, pede mais justiça.

Agora, neste tempo de crise e desconfiança, chegou a vez do homem populista. Milhões de pessoas não pretendem saber se são ou não responsáveis pelo que quer que seja. Rejeitam à partida qualquer verdade incómoda e estão dispostas a acreditar somente no político exótico que, como eles, dividir o mundo entre quem tem e não tem poder. O homem populista quer acreditar, mas acima disso quer ver sangue correr.


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