quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Melancolia de Outono II - o espelho


Naquele dia de sol brilhante ali estava ele, na esplanada cheia de gente.
Ela pressentiu-o muito antes dos seus olhos o reconhecerem. Há quanto tempo, meu Deus? Há quanto tempo…
Ele estava acompanhado mas absorto, um pouco altivo como se pairasse acima da multidão. Num relance, confirmou-lhe os mesmos gestos, notou-lhe o cabelo já grisalho, reparou que o sucesso não lhe apagara o jeito tenso de quem está sempre à espera de ser confrontado.
Ela entrou e, de dentro, ficou a olhá-lo, o vidro a separá-los, desejando que ele a visse, temendo que ele a visse, de novo aquele dilema que a memória lhe trazia tão vivo, como se fosse ontem, como se fosse ontem…
Demorou-se um instante suspenso a recuperar-lhe os traços, a estudar-lhe as marcas do tempo, a adivinhar nos vincos dos anos a história que já tinha sido escrita sem ela.
Demorou-se a saborear a doce melancolia que a invadia, aquela tristeza das memórias felizes, a mesma que se sente ao passar numa casa que habitámos e agora revemos vazia de nós.
Demorou-se nessa posse silenciosa até o sentir de novo junto de si, como se nesse breve instante tivesse caminhado a vida inteira a seu lado sem que ele a sentisse.
Mas ele olhava através do vidro com indiferença distraída, olhava uma e outra vez, sem que nada denunciasse que a via. Cerrou-se súbito o coração, pensou que ele não a reconhecia, como era possível? Tantas vezes imaginara como seria um reencontro ,o alvoroço da surpresa, palavras de circunstância, um olá apressado, talvez um tremor na voz, as mãos húmidas a trair a emoção, mas o esquecimento puro e simples isso não, isso nunca tinha posto sequer como possibilidade.
Foi nessa altura que alguém na esplanada ajeitou o cabelo servindo-se do vidro, foi então que ela reparou que do lado de fora era um espelho, o reflexo devolvido para proteger o interior da luz intensa do dia de sol.
Ele olhava na montra a sua própria imagem, por isso a fixava uma e outra vez, parecendo que a via a ela mas vendo-se apenas a si próprio.
Ela surpreendeu-se a rir sozinha, como se de repente lhe contassem o resumo inesperado de uma longa história. “- Afinal, nada mudou”, pensou, “sempre foi assim”.
E saíu, sem pressa, passando com o seu passo curto e decidido pela esplanada cheia de desconhecidos.

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