sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Crónica iMissio: Há textos que vão-se sabendo de [...] coração (II)




Há textos que vão-se sabendo de cor, ou seja, de coração. Vão-se entranhando, tornando-se parte de nós. Foi assim que comecei a crónica da semana passada. Recordo bem o que tinha em mente quando a escrevi. Pensava na oração, na liturgia das horas, onde os salmos ou cânticos vão-se repetindo diariamente, semanalmente ou de 4 em 4 semanas. Depois, pensei em tantos outros textos, que nas mais variadas razões vão-se repetindo, saboreando, e, sim, entranhando, tornando-se parte de nós. Não sonhava que uma semana depois de o ter escrito (sim foi na 5.ª feira à tarde) iria ver, melhor, estaria literalmente em palco numa peça de teatro que andaria à volta disto do saber de cor… de coração.

Um companheiro jesuíta já me tinha falado da peça de um português que estava em Paris. Mas, depois de dias agitados com tanto, acabei por me esquecer. Até que na 4.ª feira, em leituras à volta da teologia estética, lembrei-me: “a peça que o Manel me falou!” Fui pesquisar e estaria em cena até 6.ª feira. “Só posso ir amanhã!” Comprei o bilhete on-line. Continuei, tal como na quarta à tarde, em leituras à volta da teologia estética: “(…) Dostoievsky afirma, com referência a Cristo, que a beleza salvará o mundo. Ou recordando Jean Anouilh que escreveu, numa das suas obras: ‘a beleza é uma das raras coisas que não leva a dúvidas sobre Deus’” [Gesa. E. Thiessen]. Inevitavelmente, acabei por recordar o final do discurso de Bento XVI, no seu encontro com o mundo da cultura portuguesa no CCB: “Fazei coisas belas, mas sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza.” 

Aproxima-se a hora. Saio de casa. Chego ao teatro. “By heart”, chama-se a peça, escrita, encenada e interpretada por Tiago Rodrigues. Ainda perguntei à senhora que recebia os bilhetes, tendo em conta que os lugares não eram marcados, qual o melhor sítio. “2.ª ou 3.ª fila, a meio. Mas verá, toda a plateia tem boa visibilidade”. Sentei-me na 2.ª fila. Saliente-se que o actor já estava em cena. Esta técnica dá-me sempre que pensar. Já está a acontecer. É isso. Não há um pano de palco na vida, ela está sempre a acontecer. As pessoas falam, ele lê um livro, e é isso, já está a acontecer. A vida está sempre a acontecer. Recordei o “Talk Show - até se apagar o corpo”, uma coreografia de Rui Horta, em que já está acontecer algo quando entramos… e tudo começa com um transplante de coração. O actor lê, até se levantar e, em francês (toda a peça é em francês): “Preciso de 10 pessoas que ocupem estas cadeiras vazias.” Risos, agitação. “Não se apressem. (…) Bem, dizer que essas 10 pessoas vão ter de, ao longo da apresentação, aprender de cor alguns versos de um poema”. Risos, agitação. Aproxima-se uma senhora. Alguém mais. Outra pessoa. E outra. Lancei-me também, ocupando o lugar ao lado do banco do autor. 

Dá-se uma viagem pela literatura. Onde George Steiner é citado a partir d’ “O belo e a consolação”. Ri por dentro, recordando as minhas leituras da tarde. O saber de cor, no coração, sim, onde se guarda a força dos afetos. Aprende-se de cor, mais do que memória mental, o que se ama ou quer fazer viver. No coração guardam-se versos de poemas ou capítulos de textos que nenhuma polícia ditatorial poderá mandar queimar. Aí, de cor, ficam a amadurecer as palavras que fazem sentido à vida. Em jeito de recordação no ritual judaico, onde o mais novo pede ao mais velho para repetir a história dos antepassados. A explicação de toda essa viagem: a avó Cândida que sempre leu durante toda a vida. Mesmo preparando bacalhau no restaurante que abriu com o marido, passando também a 2.ª guerra mundial. A mistura do banal com o profundo, as palavras e o sentir ecoavam-me… e voltava aos versos de Shakespeare que todos tínhamos de aprender de cor.

Em jeito métrico, como instrução primária, lá repetíamos. Eu ouvia os risos do público, ou o sussurrar tentando também aprender. Vulnerável, sentia-me. Às vezes perdido. Como alguns outros, que não conseguíamos “de-cor-ar”. Sentia a face a aquecer, outros viam o rubor em contraste com o casaco verde, que disparou quando, chegou a minha vez de aprender o verso individual. Diz o actor: “‘Je souffre au dur retour des tourtures soufferts.’ Este é difícil para um português. Vamos?” Começo “Je souffre au…” Olha para mim: “É português?” Aceno que sim. Gargalhada geral. Senti o verso em mim. Depois, enquanto outros aprendiam os seus versos, estando eu naquela perspectiva, observei uma ou outra vez aqueles que da plateia assistiam ao entoar da “cantilena shakespereana”. Braços cruzados. Queixo apoiado na mão. Corpo deslizado na cadeira. Muitas pernas cruzadas. Risos. Ar de cansaço. Tanto a saber de cor na vida. O saborear da literatura que também nos transporta para o mais que somos. A avó Cândida teria de ir para o lar. O neto oferecia-lhe livros. Até saber que iria ficar cega. E aí tudo muda. “Saber de cor um texto, para o ler mentalmente quando já não possa ver.” A oração do peregrino russo: repete-se, repete-se, repete-se, para que todo o corpo reze esse versículo. A beleza das palavras que assumem corpo, que tornam-se carne. Afinal, o Verbo fez-se carne. Sim, a Palavra que disse “faça-se luz” assume a humanidade plenamente. E antes de morrer e ressuscitar, deixa-se em eucaristia, acção de graças, de pão e vinho, a serem comidos e bebidos como Corpo e Sangue por nós, para sermos o que Ele é: vida em abundância a ser dada.

No final, os 10 fomos contemplados com algo. Ironia das coisas. Tendo-se recordado antes o profeta Ezequiel, que teve de comer as palavras que iria proferir em nome de Deus, foi-nos dado a comer os versos escritos em “pão de hóstia”. Mais uma vez recordei a crónica da semana passada: Às vezes faz falta mastigar a palavra. [Pois] “não é o muito saber que sacia a alma, mas sim saborear as coisas internamente” Sto. Inácio de Loiola. Alguém comentou: “mas é religioso?” Eu ria-me. Não, não é. Ou apenas será, apeteceu-me responder, se deixarmos que a religião seja o que ela também deve ser: re-ligar o que a humanidade separou da divindade. Não comi todos os versos. Parei a meio, pensando, vou guardar algo de “re-cor-dação”. E o que não comi, dando-me conta quando vi? “Íntimos remorsos; retorno das torturas; dor; feridas reabertas”. Sorri e pensei: “Não como, mas escuto muito disso nas confissões, ajudando a libertar-lhes, em nome de Deus, o coração.” 

Depois do espectáculo, fui ter com uns estudantes que faziam uma peregrinação nocturna à basílica do Sacré-Cœur.

A beleza disto tudo? Saber que a vida tem imenso de misterioso a saber “by heart”.  

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